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A Longa e Terrível Transformação de Oliver Barbosa

junho 9, 2015

Naquela fatídica manhã de quarta-feira, Oliver Barbosa levantou de sua cama com o esforço comum de todas as manhãs. Coçou de leve a imensa barriga e arrastou-se lentamente até o banheiro, ainda de olhos semicerrados. Coçou a orelha, mexeu no cabelo, na barba, e começou a tirar a sua roupa de dormir.

Entrou no chuveiro, onde tomou um demorado banho, tomando cuidado para lavar as dobras de sua pele. Lavou os cabelos com shampoo e não se importou em usar o condicionador de sua mãe.

Abriu a janela do banheiro na esperança de que o ar frio do lado de fora desembaçasse o espelho e começou a se vestir. Colocou sua cueca, suas meias, sua calça jeans e a camisa verde clara da empresa. Assim que pôde ter uma visão melhor, parou em frente ao espelho. Penteou os curtos cabelos cor de cobre, passou a mão na barba falha que insistia em cultivar e pegou a escova de dentes.

Colocou a pasta na escova, molhou ambas com a água da torneira e enfiou na boca. Escovou a lateral direita, então a esquerda, a frente e cuspiu. Molhou a escova novamente. Repetiu o processo. Cuspiu. Sorriu para o espelho. Todos os dentes brancos e retos, com exceção dos caninos excessivamente longos. Oliver se dirigiu para fora do banheiro, foi até o corredor e parou. Voltou ao banheiro e olhou para o espelho novamente. Oliver nunca teve os caninos excessivamente longos.

Após se certificar de que sim, era aquilo mesmo, seus dentes estavam mais longos, Oliver saiu para o corredor e se dirigiu até a cozinha. Sua mãe já estava preparando o seu café da manhã, como fazia todos os dias antes de fazer os seus exercícios aeróbicos. Oliver deu um beijo de bom dia em sua mãe, sentou-se na mesa e perguntou para ela se havia algo de diferente nos seus dentes. A velha senhora respondeu que não, que estava com os dentes exatamente como no dia anterior, ao que o filho consertou a pergunta e apontou para os próprios dentes.

A mãe observou e comentou que sim, dois deles estavam maiores. Perguntou se estavam doendo ou incomodando e, diante da negativa do filho, disse que ligaria para a dentista e marcaria um horário para aquela semana, ainda.

Após comer duas torradas, um pedaço de bolo e tomar uma xícara de café com leite, Oliver se despediu de sua mãe e foi até a garagem. Lá entrou em seu carro e dirigiu até a empresa onde trabalhava havia quatro anos.

A empresa não ficava muito longe, de modo que Oliver chegou em poucos minutos. Cumprimentou timidamente a recepcionista e seguiu para sua mesa. Trabalhou todo o período da manhã sem grandes incomodações. Ninguém o questionou sobre nada e não precisou falar em público, de modo que mesmo que alguém se importasse com sua saúde bucal, não teria a oportunidade de ver seus dentes.

Durante o almoço Oliver se sentou sozinho, como de costume. Serviu-se de salada, arroz, feijão, macarrão, um pedaço de carne de porco e duas panquecas. Na hora de pegar uma bebida, lembrou-se de que talvez fosse melhor cuidar da dentição, e optou por uma água mineral no lugar da coca-cola.

Terminada a hora do almoço, voltou até sua mesa. No período da tarde, o sol entrava na sala de Oliver por uma janela lateral. Ocasionalmente, naquele dia as cortinas se encontravam abertas, de modo que o rapaz ficou exposto a forte luz solar durante um grande período. De uma forma geral, aquilo não devia incomodar. Sempre ficou no sol sem problemas, mesmo no verão. Dessa vez, porém, sentiu a pele ficar bastante avermelhada. O calor não era algo que o incomodava, mas não podia deixar de reparar que estava lentamente se assemelhando a um tomate.

Discretamente fechou as cortinas e voltou ao seu lugar, mas com medo de que algo muito estranho pudesse estar acontecendo consigo. Passou o resto do dia com um ligeiro nervosismo e inquietação, mas nada que alguém pudesse ter reparado. Bateu o ponto ao fim do expediente e voltou para sua casa.

Estacionou na garagem e entrou pela porta lateral. Sua mãe já estava pondo a mesa e fazendo diversas perguntas sobre o trabalho. Perguntou acerca dos dentes e o filho respondeu que estavam iguais. A consulta no dentista estava marcada para o final da semana.

Oliver se sentou a mesa e junto de sua mãe comeu quatro sanduíches e bebeu um suco de laranja. Após a refeição a mãe foi lavar a louça e o rapaz foi até o seu quarto. Resolveu ligar o computador e pesquisar na internet o que poderia estar acontecendo com o seu corpo. Obviamente a profissional na área de ortodontia teria um diagnóstico mais qualificado, mas pesquisar por conta própria não poderia fazer mal algum.

Após abrir o site de buscas, Oliver começou a digitar os seus sintomas. Dentes crescendo e reação adversa ao sol. Primeiro resultado: vampiros. Riu, obviamente. Refinou a busca para encontrar respostas separadamente, visto que ambos os sintomas poderiam não estar relacionados. A queimação na pele era considerada normal. Talvez tivesse estado no sol mais tempo do que percebera. Quanto ao crescimento anormal dos dentes não conseguiu nenhum resultado conclusivo. Melhor seria ficar atento ao sol da janela e esperar a consulta na dentista.

Ficou mais algumas horas acordado, assistindo a um filme junto de sua mãe. Dormiu sem dificuldades e acordou ao som de seu despertador, como todos os dias. Desligou o aparelho e levantou-se com o esforço cotidiano. Arrastou-se até o banheiro e se olhou no espelho. Os dentes pareciam um pouco mais compridos, mas poderia muito bem ser impressão. Sua barba ainda possuía muitas falhas, mas o bigode parecia estar crescendo melhor. Entrou no chuveiro e lavou os cabelos, e o imenso corpo. Sempre tomando cuidado com as dobras da pele. Pele esta que parecia um tanto quanto áspera. Precisaria comprar um sabonete diferente na próxima vez que fosse ao mercado.

Vestiu-se e foi até a cozinha, onde sua mãe já o esperava com o café pronto. Conversaram um pouco sobre o sonho que ela tivera, alguma coisa envolvendo um helicóptero e um astro de cinema dos anos 50. Oliver comeu uma torrada, um pedaço de bolo e duas maçãs. Seguiu para seu carro e dirigiu até a empresa.

Durante o trajeto, percebeu que o carro acelerava com muita facilidade, o que poderia ser um risco no trânsito. Por sorte era um motorista cauteloso, bem como sua mãe, mas teria de levar o carro a oficina e verificar os freios.

Na empresa, sentou-se na sua mesa e encontrou um memorando de seu chefe. Não era nada urgente, mas Oliver teria muito trabalho nos próximos dias. Um supervisor da matriz da empresa visitaria a filial onde trabalhavam e todos os setores precisavam estar 100% em ordem. Dessa forma, a manhã foi destinada a fazer um relatório completo do andamento atual do setor.

No almoço, Oliver comeu salada, arroz, feijão, e quatro pedaços de peixe frito. Não que fosse o maior fã de peixe da empresa, mas a carne estava tão passada do ponto que resolveu trocar a dieta naquele dia. A carne mal passada parecia sempre mais apetitosa.

O resto da tarde se passou como de costume. As cortinas permaneceram fechadas e o serviço ocupou a mente de todos na empresa durante as horas que se seguiram. Tomando cuidado com o acelerador, Oliver foi para casa.

Entrando pela porta lateral, encontrou sua mãe na sala de estar. A mesa da cozinha já estava posta e ela assistia televisão enquanto esperava seu filho. Segundo ela, um cano do banheiro parecia ter se soltado e ela precisava da ajuda do filho para colocá-lo de volta no lugar. Em seguida poderiam jantar com tranquilidade.

Enquanto a mãe ia buscar a caixa de ferramentas, o filho se dirigiu ao banheiro para ver o estrago. O chão ainda estava úmido, mas no mais havia apenas um cano solto. O cano era um pouco alto para que a mãe alcançasse, mas o jovem, com todo o seu tamanho, conseguia com facilidade.

Antes mesmo que sua mãe voltasse, Oliver pegou o cano, colocou de volta em seu lugar de origem e o rosqueou com as próprias mãos. Em outros tempos aquela seria uma tarefa difícil, mas parecia que os braços dele estavam mais fortes que de costume. Quase mais compridos, também. Quando chegou com a caixa de ferramentas e viu que o filho já havia resolvido o problema, a Sra. Barbosa o chamou para jantar.

A mesa estava farta, como de costume, mas nada daquilo parecia apetecer Oliver. Comeu um sanduíche com patê de atum e uma pera, apenas para comer algo e se retirou para o quarto. Estava confuso com o que estava acontecendo com seu corpo. Primeiro os dentes, então a pele e agora parecia mais forte, também. Recorreu, novamente, à internet. Os resultados eram variados. Ou ele estava fazendo exercícios que desconhecia, ou estava se transformando em algo fora do comum. Foi então que começou a se preocupar.

Dentes compridos, alergia ao sol, força fora do comum, falta de apetite. Aquilo não poderia ser coincidência. Oliver estava lentamente se transformando em uma criatura das trevas. Olhou para fora da janela de seu quarto, onde a luz da lua iluminava a rua. Sentiu medo. Medo daquilo que poderia se transformar.

Foi até a cozinha e deu um demorado abraço em sua mãe. Disse que a amava e agradeceu a ela por tudo o que já tinha feito. Sem entender muito o gesto abrupto de afeto, a senhora agradeceu e disse que o filho fora o melhor presente que a vida já havia lhe dado.

Naquela noite, Oliver não dormiu. Ao nascer do sol, correu para o espelho do banheiro. Os dentes estavam anormalmente maiores, quase alcançando o seu queixo. Os cabelos de sua cabeça começavam a cair e sua pele parecia mais acinzentada do que de costume. Algo estava muito errado.

Ligou o computador e pesquisou pelos diversos tipos de monstros da noite. Encontrou uma foto de um ser careca, de dentes afiados, membros compridos. Forte, inteligente, diferente daquilo que imaginava. Oliver encarava na tela brilhante do computador uma imagem de Nosferatu.

Em pânico, se trancou no quarto e chamou pela mãe. Esta apareceu preocupada na porta, perguntando o que estava acontecendo. Entre soluços, Oliver disse que estava doente. Pediu que a mãe telefonasse na empresa e avisasse que ele não poderia trabalhar. Quando a mãe tentou entrar no quarto respondeu com raiva. Não queria que ela lhe visse daquele modo. Assustada, a velha senhora correu para o telefone da sala.

Oliver ficou ali, deitado em sua cama, escondido sob as cobertas. Sentia o sangue gelar em suas veias. Sentia os dentes crescerem em sua boca. Era tarde demais para ele. A pele se enrijecia e se tornava cada vez mais áspera. Os cabelos caíam em tufos de sua cabeça. Os membros se alongavam. A sensibilidade dos dedos diminuía. E então aconteceu.

Ao cair da noite, sob a grande sombra noturna, ele se levantou. Aquele, que outrora fora um homem como outro qualquer. Aquele que não era mais.

Caía uma forte tempestade do lado de fora de sua casa. O vento uivava forte e a escuridão tomava conta do céu. Nuvens negras pairavam sobre a cidade, densas. A água escorria gelada pelas paredes. Atraído pelo frio e pelas trevas que englobavam a noite, Oliver se levantou.

Arrastou-se pelo quarto e abriu a grande janela. Pulou para fora e caiu pesadamente no gramado. Foi andando do modo que pôde até a rua. Avistou ao longe, escondidos sob uma parada de ônibus, um casal de adolescentes abraços.

Estavam ambos tão distraídos nos braços um do outro, tão envoltos de paixão, que sequer repararam na sombra que se aproximava lentamente. Sem fazer barulho e com muita calma, a sombra foi se aproximando mais e mais. Somente quando já estava dentro do ponto de ônibus foi que o casal pôde ver, sob a fraca luz de uma lâmpada elétrica, aquilo que outrora fora Oliver Barbosa transformado completamente… EM UMA MORSA!

Sobre Bonecas Assustadoras

abril 12, 2013

Luciano estava farto da vida na cidade grande. Trabalho, transito, barulho, poluição. Não queria mais. Estava farto, cansado, estressado. Resolveu, então, que sairia da cidade. Daria um jeito de viver em um lugar mais tranquilo, longe de tudo o que lhe perturbava. Vendeu seu apartamento a vista. Passou no banco e retirou todo o seu dinheiro. Colocou tudo dentro de uma sacola e entrou no carro, sem um destino muito certo.
Após algumas centenas de quilometros, avistando cada vez menos placas e mais árvores, Luciano se deparou com uma pequena cidade. Era simpática naquela maneira rupestre. Pequena e antiga como as vilas européias dos contos de fadas. Resolveu, então, que aquele parecia um bom lugar para trocar de vida. Tudo ali era simples e prático. As pessoas se cumprimentavam na rua. Perfeito.
Andou por algumas ruas, pediu algumas informações, e logo estava na imobiliária da cidade. O atendente ficou surpreso ao ver um rosto desconhecido. Aparentemente aquilo era raro na pequena cidade que nem prédios possuía. A impressão de Luciano era de que a imobiliária fazia as vezes de um pequeno jornal, sendo a sua única função divulgar quem estava vendendo o que, já que todos se conheciam na cidade mesmo.
– Em que posso ajudar? – Perguntou o vendedor, sendo genuinamente simpático
– Olá, eu estou querendo me mudar e estou procurando uma casa nessa cidade. Vocês tem algo a oferecer?
– Oh, o senhor está com sorte. Estamos com vários terrenos disponíveis, mas receio que sejam praticamente todos nos arredores da cidade e…
– Não, não. Perdão. Eu estou procurando um lugar para me mudar imediatamente. Não posso esperar para construir uma casa.
– Oh… Nesse caso – O jovem começou a remexer em alguns papéis – Eu receio informar que… não, espere! Temos uma casa, sim, mas…
– Mas?
– Ahn? Ah, nada. Temos uma casa, no topo da colina. O senhor gostaria de vê-la?
– Sim, por favor.
Saíram da imobiliária e entraram no carro da empresa. O atendente sorria, tranquilo, enquanto falava um pouco sobre a cidade. As ruas eram todas de paralelepípedo e as casas de estilo europeu. A vila surgiu por acidente. Os antigos senhores ricos das terras ao redor construíram uma pequena aldeia de verão, onde passavam as férias apenas entre pessoas selecionadas. Mandavam, porém, criados para tomar conta das casas durante o ano e deixar as coisas em ordem. Com o passar dos anos e a decadência dos senhores, os criados passaram a povoar a vila, que manteve seu aspecto de luxo simples das férias de campo.
Após andar por três ou quatro ruas, o carro saiu do caminho da cidade e seguiu por uma pequena estrada de terra. A medida que as árvores rareavam era possível observar uma casa maior e mais suntuosa que as demais. Era pintada de cores escuras e parecia ligeiramente abandonada, como se não recebesse visitantes há anos. O atendente da imobiliária tirou um grande molho de chaves do bolso e utilizou a maior delas para abrir a porta da frente. Havia muita poeira e teias de aranha nos móveis.
– Perdoe o estado da casa, ela não é muito visitada. As pessoas não se interessam em comprá-la.
– Estou vendo, mas porque não? É muito cara?
– Não, não foge muito do padrão das outras. Deve ser pela distância da cidade, sabe? A estrada de terra. As pessoas querem comodidade.
– Hum…
A casa era enorme. Havia um quarto com banheiro, um quarto de hóspedes, um banheiro social, uma sala de estar com lareira, cozinha, área de serviço e sótão. Os móveis remetiam ao século XVIII, de madeira, pesados e detalhados. As paredes precisavam de uma pintura, as portas rangiam um pouco e o sótão estava trancado. A chave provavelmente estava na imobiliária. Mas com uma ou duas semanas de trabalho a casa estaria como nova. Luciano fechou negócio. A casa mobiliada custou menos do que seu antigo apartamento na cidade e era quase duas vezes maior.
Os dois voltaram, então, para a cidade. Luciano assinou alguns papéis e pegou as chaves do imóvel. A chave do sótão não foi encontrada e já estava no final da tarde. O atendente se desculpou e prometeu providenciar a chave o quanto antes, mas Luciano não se importou com a demora. Não usaria o sótão tão cedo mesmo.
Após fechar negócio, entrou no seu próprio carro e foi até seu novo lar. O sol estava quase se pondo. Apesar de antiga, as instalações elétricas da casa eram muito boas. Luciano varria e tirava o pó dos móveis ao mesmo tempo que ia descobrindo certos detalhes sobre os mesmos. Havia algumas marcas de faca na mesa da cozinha, arranhões nas poltronas da sala e uma mancha escura no corredor que levava aos quartos. As paredes estavam descascando, mas poderiam esperar alguns dias para receber uma pintura.
Não havia comida na casa, então, a noite, Luciano comeu apenas alguns biscoitos que possuía dentro do carro. Estava cansado da viagem e da faxina, então resolveu dormir cedo. No dia seguinte lavaria as paredes e os pisos e iria até a cidade comprar algumas antiguidades para decorar a casa. Suas roupas já estavam no guarda roupa e seu grande saco de dinheiro da cidade estava ao lado da lareira.
Luciano deitou sob os lençóis e dormiu. Ou tentou. Acordou no meio da noite ouvindo um barulho muito alto no sótão. Parecia o movimentar de móveis e uma risada abafada. Quando tentou acender as luzes, viu que o interruptor não funcionava. Pegou então uma lanterna e seguiu, lentamente, até a escada que dava para o sótão. No meio do caminho se armou com um espeto de ferro que decorava a cozinha.
Com a lanterna em uma mão e o espeto na outra, Luciano encarava a porta do sótão, agora silencioso. Com a mão da lanterna, tentou abrir a fechadura. Para sua surpresa, a porta estava aberta. O feiche de luz da lanterna captou alguma coisa se movendo na escuridão. Movendo a luz, porém, tudo o que ele viu foi um vestido velho sobre uma cadeira. Do outro lado do sótão, porém, havia uma boneca assustadora. Os cabelos estavam cortados em comprimentos diferentes, o vestido sujo e as mãos retorcidas. Um dos olhos estava fechado e o outro aberto. A boca se retorcia em um estranho sorriso.
Enquanto Luciano a observava, o olho que estava fechado abriu e fechou novamente, em uma piscada lenta. O outro olho estava sempre aberto. Rapidamente ele voltou para a escada e fechou a porta do sótão atrás de si. Subitamente, acordou em sua cama com o sol em seu rosto.
Convencido de que foi tudo apenas um sonho, Luciano levantou da cama e se preparou para um novo dia. Tomou um longo banho e se preparou para sair de casa. Iria comprar algumas antiguidades para decorar a casa e na volta lavaria os pisos e as paredes. Até o fim da semana ainda tinha planos de pintar a casa e começar um jardim.
Entrou no seu carro e dirigiu pela estrada de terra batida. A cidade não ficava exatamente longe, talvez um quilometro ou dois, se muito. Para andar a pé até seria uma distância a considerar.
Primeiro Luciano procurou um mercado, onde comprou frutas, verduras, carnes e comida de forma geral. Não poderia viver de biscoitos para sempre. Depois parou em um pequeno restaurante para almoçar. De forma geral, todos pareciam excessivamente simpáticos e receptivos com ele, embora ninguém fizesse nenhum tipo de pergunta pessoal. Ninguém se interessava sobre de onde ele veio, se tinha família, nada. Parecia algo até mesmo atípico para uma cidade pequena.
No começo da tarde, deixou o carro estacionado em frente ao restaurante e saiu caminhando. Faria digestão, conheceria a cidade e procuraria uma loja por conta própria. As ruas eram tranquilas, tudo parecia perto e silencioso. Haviam mercados, lojas de roupa e casas. Muitas casas. Era aquilo que Luciano precisava, fugir da cidade grande.
Encontrou, depois de algum tempo caminhando, um antiquário. Estava vazio, então Luciano pode observar a vontade os produtos. Haviam baús, vasos, móveis, quadros, e uma série de outros objetos. Todos muito delicados. Luciano não sabia bem o que estava procurando, então observava tudo com interesse. Levou um susto ao perceber que não estava mais sozinho na loja. Sentado em uma cadeira, ao fundo da loja, estava um senhor de muita idade. Usava uma longa barba cinzenta e vestia roupas simples. Seu olho esquerdo vagava desnorteado, enquanto o direito estava fixo no cliente.
– Oh, olá, eu só estou dando uma olhada aqui.
O velho riu. Só então Luciano percebeu que estava em seu colo uma pequena caixa de madeira de um forte tom escarlate ornamentada de pequenos detalhes e fechadura prateados. Luciano pôde ouvir os ossos do velho estalando a medida que movia a mão para lhe estender a caixa. Depois de pegar a caixa o velho estendeu a chave. Uma pequena e suja chave prateada. Ao observar de perto, Luciano percebeu que o seu nome estava escrito na chave, e logo sabia, de alguma forma, o que estava dentro da caixa.
Com cuidado, Luciano colocou a chave na fechadura e girou. A tampa fez um leve estalo, revelando que poderia ser facilmente aberta. Ao empurrá-la para cima, Luciano encontrou a mesma boneca do seu sótão. O mesmo cabelo mal cortado, as mesmas roupas sujas e o mesmo olho que não se fechava, olhando fixamente para ele. Fechou a tampa com força e olhou novamente para o velho, mas ele não estava mais ali. Havia apenas a cadeira de madeira. Luciano então saiu da loja e voltou para seu carro. Dirigiu apressadamente até sua casa e só então se deu conta de que ainda carregava a caixa de madeira.
Levou a caixa até o sótão e a largou lá dentro, sem nem mesmo se perguntar como a porta estava destrancada. Assustado e desesperado, mas sem saber o que fazer, Luciano foi cuidar do jardim. Ficar exposto a luz do sol lhe faria bem. Cavou alguns buracos na terra, arrancou mato e ervas daninhas, cortou a grama. Não tinha sementes ainda, mas, se tudo desse certo, poderia plantar flores e árvores frutíferas ainda no dia seguinte. Depois decidiu que lavaria o chão da casa. Ao chegar na área de serviço em busca de baldes e escovão, porém, Luciano encontrou, novamente, a boneca. Parada, sobre o armário, observando. Assustado, pegou os baldes e saiu. Sem tocar na boneca. Quando chegou na sala, porém, viu que ela estava lá. Sobre a lareira. Observando. A boca moldada naquele sorriso torto.
Luciano correu de volta para a área de serviço, apenas para confirmar o que temia: A boneca não estava lá. Não era outra boneca. Era a mesma. Voltou, cautelosamente para a sala. A boneca estava lá. Seu olho sempre aberto. Luciano riu. Riu alto. Encheu os baldes com água e começou a limpar o chão, sendo observado pela boneca. Quando terminou a sala e passou para o corredor, lá estava ela novamente. E quando foi jogar a água suja fora de casa, a boneca esperou do lado de dentro, olhando pela janela. Observando.
Quando a noite chegou, Luciano tomou um banho e vestiu seu pijama. Foi até o seu quarto e viu, novamente, a boneca. Sob sua mesa de cabiceira, apenas esperando. Ele riu. Um riso desesperado. E deitou na cama. Virava para um lado, virava para outro. Toda vez que fechava os olhos podia sentir a boneca observando. Desistiu, então, de tentar dormir. Foi até a cozinha preparar um chá. Esquentou a água, colocou o sachê e colocava mel tranquilamente quando escutou uma voz fraca e aguda, como uma criança:
– Você realmente precisa de todo esse mel?
Era a boneca, sentada na mesa.
– Ok, agora chega!
Luciano violentamente agarrou a boneca e a levou para o sótão. Abriu a caixa de madeira e jogou a boneca dentro, trancando logo em seguida. Carregou a caixa para baixo até a sala de estar, onde a jogou na lareira. Em seguida pegou alcool e fósforos e colocou fogo na caixa, logo ao lado do saco de dinheiro da cidade grande.
Luciano ria desesperadamente enquanto via a chama acender e a sala se encher de fumaça. A chaminé devia estar fechada e Luciano não poderia abrir agora que as chamas estavam altas. Quando foi abrir a porta para sair dali, porém, percebeu que estava trancada. A porta que levava até o corredor também não abria. A fumaça começava a tomar conta de toda a sala e tornava difícil a respiração.
Ele correu então até a janela, na esperança de um pouco de ar. Qual não foi a sua surpresa ao perceber que ali, do outro lado da janela, estava a boneca. Observando com seu olho sempre aberto. Não era ela quem estava na caixa em chamas. Era ele.

Sobre Inspiração

janeiro 27, 2010

– Sobre o que você quer conversar?

– Então, cara, estou com um problema no trabalho.

– Trabalho? Ok, vamos supôr que seus livros te sustentem, e aí? É a editora?

– Nem vou responder, ta? E não, não é a editora, sou eu.

– Crise criativa?

– Antes fosse! Eu tenho mil ideias borbulhando, mas não posso usar nenhuma.

– Me esclareça.

– Eu estou apaixonado!

– E?

– Como “e?”?

– Sim, isso não me diz nada.

– Só tenho ideias pra romances, cenas bonitas, diálogos melosos. Não tenho cabeça pra terror, mistério e tudo o que eu escrevia antes.

– E qual o problema em escrever romances?

– Aí o problema é a editora. Eles estão cheios de romancistas, não querem mais um.

– E porque não disfarça o romance?

– Disfarçar?

– É, faça um crime. Aí o detetive se apaixona e tal. Só não mude muito o foco da trama, use essa desculpa apenas pra usar suas cenas, extravasar sentimentos.

– Mas eu nem sei como começar!

– Não tem nenhuma experiencia que possa se basear?

– Experiencia?

– Sei lá, nunca presenciou um assalto, ouviu alguma história e quis ver o desfecho?

– Hum… Isso me dá uma ideia.

– Boa ou ruim?

– Você não vai gostar muito, mas o livro vai fluir muito rápido.

– Puxa, e o que é?

No dia seguinte foi encontrado um corpo flutuando no rio.

Sobre Medo

janeiro 20, 2010

As nuvens densas escondiam as estrelas naquela madrugada fria. O assovio de vento que precedia a tempestade entrava pelas frestas da janelas. Dentro da pequena cabana a jovem Beatriz acendia uma vela.

A luz bruxoleante revelara o interior da pequena casa, que não continha muito mais do que uma cama, um banheiro, uma mesa e uma pequena cozinha. Devido ao adiantado da hora, a menina foi se deitar.

Enquanto o sono não vinha ela prestava atenção nos sons do vento. Era um assovio calmo, quase musical. As sombras da vela faziam agradáveis desenhos na parede, mas, subitamente, o cenário mudou.

Um forte vento, quase um grito, escancarou a janela e apagou a vela. Beatriz se assustou e levantou em um pulo. Foi até a janela, mas quando ia fechá-la ouviu uma voz muito nítida chamar o seu nome. Se virou depressar, mas não havia ninguém ali.

Fechou a janela e acendeu a vela novamente. O assovio do vento se misturou novamente à estranha voz que ainda chamava seu nome. Um estranho barulho que ela não identificou completava a macabra sinfonia.

Entrou no banheiro para lavar o rosto. Apoiou a vela na janela e jogou água no rosto. Não sabia porque, mas fazia isso quando estava nervosa. Se olhou no espelho e percebeu algo que a apavorou ainda mais. Havia uma sombra em seu reflexo, mas o único ponto luminoso estava nas suas costas. O barulho de difícil identificação ficava mais alto. Ela se virou, mas não havia nada ali. Saiu da frente do espelho, mas a sombra continuava a ser refletida.

Beatriz pegou a vela e correu para fora de casa. O vento ainda a chamava e logo apagou a vela, que foi deixada pra trás. Ela correu o quanto podia. Se apoiou em uma árvore para descansar. Virou-se para ver a cabana e gritou. O barulho misterioso era o arrastar de correntes.