Naquela fatídica manhã de quarta-feira, Oliver Barbosa levantou de sua cama com o esforço comum de todas as manhãs. Coçou de leve a imensa barriga e arrastou-se lentamente até o banheiro, ainda de olhos semicerrados. Coçou a orelha, mexeu no cabelo, na barba, e começou a tirar a sua roupa de dormir.
Entrou no chuveiro, onde tomou um demorado banho, tomando cuidado para lavar as dobras de sua pele. Lavou os cabelos com shampoo e não se importou em usar o condicionador de sua mãe.
Abriu a janela do banheiro na esperança de que o ar frio do lado de fora desembaçasse o espelho e começou a se vestir. Colocou sua cueca, suas meias, sua calça jeans e a camisa verde clara da empresa. Assim que pôde ter uma visão melhor, parou em frente ao espelho. Penteou os curtos cabelos cor de cobre, passou a mão na barba falha que insistia em cultivar e pegou a escova de dentes.
Colocou a pasta na escova, molhou ambas com a água da torneira e enfiou na boca. Escovou a lateral direita, então a esquerda, a frente e cuspiu. Molhou a escova novamente. Repetiu o processo. Cuspiu. Sorriu para o espelho. Todos os dentes brancos e retos, com exceção dos caninos excessivamente longos. Oliver se dirigiu para fora do banheiro, foi até o corredor e parou. Voltou ao banheiro e olhou para o espelho novamente. Oliver nunca teve os caninos excessivamente longos.
Após se certificar de que sim, era aquilo mesmo, seus dentes estavam mais longos, Oliver saiu para o corredor e se dirigiu até a cozinha. Sua mãe já estava preparando o seu café da manhã, como fazia todos os dias antes de fazer os seus exercícios aeróbicos. Oliver deu um beijo de bom dia em sua mãe, sentou-se na mesa e perguntou para ela se havia algo de diferente nos seus dentes. A velha senhora respondeu que não, que estava com os dentes exatamente como no dia anterior, ao que o filho consertou a pergunta e apontou para os próprios dentes.
A mãe observou e comentou que sim, dois deles estavam maiores. Perguntou se estavam doendo ou incomodando e, diante da negativa do filho, disse que ligaria para a dentista e marcaria um horário para aquela semana, ainda.
Após comer duas torradas, um pedaço de bolo e tomar uma xícara de café com leite, Oliver se despediu de sua mãe e foi até a garagem. Lá entrou em seu carro e dirigiu até a empresa onde trabalhava havia quatro anos.
A empresa não ficava muito longe, de modo que Oliver chegou em poucos minutos. Cumprimentou timidamente a recepcionista e seguiu para sua mesa. Trabalhou todo o período da manhã sem grandes incomodações. Ninguém o questionou sobre nada e não precisou falar em público, de modo que mesmo que alguém se importasse com sua saúde bucal, não teria a oportunidade de ver seus dentes.
Durante o almoço Oliver se sentou sozinho, como de costume. Serviu-se de salada, arroz, feijão, macarrão, um pedaço de carne de porco e duas panquecas. Na hora de pegar uma bebida, lembrou-se de que talvez fosse melhor cuidar da dentição, e optou por uma água mineral no lugar da coca-cola.
Terminada a hora do almoço, voltou até sua mesa. No período da tarde, o sol entrava na sala de Oliver por uma janela lateral. Ocasionalmente, naquele dia as cortinas se encontravam abertas, de modo que o rapaz ficou exposto a forte luz solar durante um grande período. De uma forma geral, aquilo não devia incomodar. Sempre ficou no sol sem problemas, mesmo no verão. Dessa vez, porém, sentiu a pele ficar bastante avermelhada. O calor não era algo que o incomodava, mas não podia deixar de reparar que estava lentamente se assemelhando a um tomate.
Discretamente fechou as cortinas e voltou ao seu lugar, mas com medo de que algo muito estranho pudesse estar acontecendo consigo. Passou o resto do dia com um ligeiro nervosismo e inquietação, mas nada que alguém pudesse ter reparado. Bateu o ponto ao fim do expediente e voltou para sua casa.
Estacionou na garagem e entrou pela porta lateral. Sua mãe já estava pondo a mesa e fazendo diversas perguntas sobre o trabalho. Perguntou acerca dos dentes e o filho respondeu que estavam iguais. A consulta no dentista estava marcada para o final da semana.
Oliver se sentou a mesa e junto de sua mãe comeu quatro sanduíches e bebeu um suco de laranja. Após a refeição a mãe foi lavar a louça e o rapaz foi até o seu quarto. Resolveu ligar o computador e pesquisar na internet o que poderia estar acontecendo com o seu corpo. Obviamente a profissional na área de ortodontia teria um diagnóstico mais qualificado, mas pesquisar por conta própria não poderia fazer mal algum.
Após abrir o site de buscas, Oliver começou a digitar os seus sintomas. Dentes crescendo e reação adversa ao sol. Primeiro resultado: vampiros. Riu, obviamente. Refinou a busca para encontrar respostas separadamente, visto que ambos os sintomas poderiam não estar relacionados. A queimação na pele era considerada normal. Talvez tivesse estado no sol mais tempo do que percebera. Quanto ao crescimento anormal dos dentes não conseguiu nenhum resultado conclusivo. Melhor seria ficar atento ao sol da janela e esperar a consulta na dentista.
Ficou mais algumas horas acordado, assistindo a um filme junto de sua mãe. Dormiu sem dificuldades e acordou ao som de seu despertador, como todos os dias. Desligou o aparelho e levantou-se com o esforço cotidiano. Arrastou-se até o banheiro e se olhou no espelho. Os dentes pareciam um pouco mais compridos, mas poderia muito bem ser impressão. Sua barba ainda possuía muitas falhas, mas o bigode parecia estar crescendo melhor. Entrou no chuveiro e lavou os cabelos, e o imenso corpo. Sempre tomando cuidado com as dobras da pele. Pele esta que parecia um tanto quanto áspera. Precisaria comprar um sabonete diferente na próxima vez que fosse ao mercado.
Vestiu-se e foi até a cozinha, onde sua mãe já o esperava com o café pronto. Conversaram um pouco sobre o sonho que ela tivera, alguma coisa envolvendo um helicóptero e um astro de cinema dos anos 50. Oliver comeu uma torrada, um pedaço de bolo e duas maçãs. Seguiu para seu carro e dirigiu até a empresa.
Durante o trajeto, percebeu que o carro acelerava com muita facilidade, o que poderia ser um risco no trânsito. Por sorte era um motorista cauteloso, bem como sua mãe, mas teria de levar o carro a oficina e verificar os freios.
Na empresa, sentou-se na sua mesa e encontrou um memorando de seu chefe. Não era nada urgente, mas Oliver teria muito trabalho nos próximos dias. Um supervisor da matriz da empresa visitaria a filial onde trabalhavam e todos os setores precisavam estar 100% em ordem. Dessa forma, a manhã foi destinada a fazer um relatório completo do andamento atual do setor.
No almoço, Oliver comeu salada, arroz, feijão, e quatro pedaços de peixe frito. Não que fosse o maior fã de peixe da empresa, mas a carne estava tão passada do ponto que resolveu trocar a dieta naquele dia. A carne mal passada parecia sempre mais apetitosa.
O resto da tarde se passou como de costume. As cortinas permaneceram fechadas e o serviço ocupou a mente de todos na empresa durante as horas que se seguiram. Tomando cuidado com o acelerador, Oliver foi para casa.
Entrando pela porta lateral, encontrou sua mãe na sala de estar. A mesa da cozinha já estava posta e ela assistia televisão enquanto esperava seu filho. Segundo ela, um cano do banheiro parecia ter se soltado e ela precisava da ajuda do filho para colocá-lo de volta no lugar. Em seguida poderiam jantar com tranquilidade.
Enquanto a mãe ia buscar a caixa de ferramentas, o filho se dirigiu ao banheiro para ver o estrago. O chão ainda estava úmido, mas no mais havia apenas um cano solto. O cano era um pouco alto para que a mãe alcançasse, mas o jovem, com todo o seu tamanho, conseguia com facilidade.
Antes mesmo que sua mãe voltasse, Oliver pegou o cano, colocou de volta em seu lugar de origem e o rosqueou com as próprias mãos. Em outros tempos aquela seria uma tarefa difícil, mas parecia que os braços dele estavam mais fortes que de costume. Quase mais compridos, também. Quando chegou com a caixa de ferramentas e viu que o filho já havia resolvido o problema, a Sra. Barbosa o chamou para jantar.
A mesa estava farta, como de costume, mas nada daquilo parecia apetecer Oliver. Comeu um sanduíche com patê de atum e uma pera, apenas para comer algo e se retirou para o quarto. Estava confuso com o que estava acontecendo com seu corpo. Primeiro os dentes, então a pele e agora parecia mais forte, também. Recorreu, novamente, à internet. Os resultados eram variados. Ou ele estava fazendo exercícios que desconhecia, ou estava se transformando em algo fora do comum. Foi então que começou a se preocupar.
Dentes compridos, alergia ao sol, força fora do comum, falta de apetite. Aquilo não poderia ser coincidência. Oliver estava lentamente se transformando em uma criatura das trevas. Olhou para fora da janela de seu quarto, onde a luz da lua iluminava a rua. Sentiu medo. Medo daquilo que poderia se transformar.
Foi até a cozinha e deu um demorado abraço em sua mãe. Disse que a amava e agradeceu a ela por tudo o que já tinha feito. Sem entender muito o gesto abrupto de afeto, a senhora agradeceu e disse que o filho fora o melhor presente que a vida já havia lhe dado.
Naquela noite, Oliver não dormiu. Ao nascer do sol, correu para o espelho do banheiro. Os dentes estavam anormalmente maiores, quase alcançando o seu queixo. Os cabelos de sua cabeça começavam a cair e sua pele parecia mais acinzentada do que de costume. Algo estava muito errado.
Ligou o computador e pesquisou pelos diversos tipos de monstros da noite. Encontrou uma foto de um ser careca, de dentes afiados, membros compridos. Forte, inteligente, diferente daquilo que imaginava. Oliver encarava na tela brilhante do computador uma imagem de Nosferatu.
Em pânico, se trancou no quarto e chamou pela mãe. Esta apareceu preocupada na porta, perguntando o que estava acontecendo. Entre soluços, Oliver disse que estava doente. Pediu que a mãe telefonasse na empresa e avisasse que ele não poderia trabalhar. Quando a mãe tentou entrar no quarto respondeu com raiva. Não queria que ela lhe visse daquele modo. Assustada, a velha senhora correu para o telefone da sala.
Oliver ficou ali, deitado em sua cama, escondido sob as cobertas. Sentia o sangue gelar em suas veias. Sentia os dentes crescerem em sua boca. Era tarde demais para ele. A pele se enrijecia e se tornava cada vez mais áspera. Os cabelos caíam em tufos de sua cabeça. Os membros se alongavam. A sensibilidade dos dedos diminuía. E então aconteceu.
Ao cair da noite, sob a grande sombra noturna, ele se levantou. Aquele, que outrora fora um homem como outro qualquer. Aquele que não era mais.
Caía uma forte tempestade do lado de fora de sua casa. O vento uivava forte e a escuridão tomava conta do céu. Nuvens negras pairavam sobre a cidade, densas. A água escorria gelada pelas paredes. Atraído pelo frio e pelas trevas que englobavam a noite, Oliver se levantou.
Arrastou-se pelo quarto e abriu a grande janela. Pulou para fora e caiu pesadamente no gramado. Foi andando do modo que pôde até a rua. Avistou ao longe, escondidos sob uma parada de ônibus, um casal de adolescentes abraços.
Estavam ambos tão distraídos nos braços um do outro, tão envoltos de paixão, que sequer repararam na sombra que se aproximava lentamente. Sem fazer barulho e com muita calma, a sombra foi se aproximando mais e mais. Somente quando já estava dentro do ponto de ônibus foi que o casal pôde ver, sob a fraca luz de uma lâmpada elétrica, aquilo que outrora fora Oliver Barbosa transformado completamente… EM UMA MORSA!